PREGADORES MIRINS: OS PITUCHINHOS DE JESUS?

A primeira vez que eu vi uma criança pregar foi em 1998. Foi em uma vigília, na Assembléia de Deus em Cordovil, no bairro de Cordovil, Rio de Janeiro. Eu tinha doze anos de idade. A pregadora tinha três anos, e se chamava Ana Carolina. Ela ficou muito famosa, em uma época em que não existia redes sociais, ela foi se tornando conhecida indo de igreja em igreja, até que se popularizou. As igrejas lotavam, todos queriam ver a criança que pregava com ousadia, igual gente grande. Acredito que ela não foi a primeira, mas, depois dela outros pregadores mirins surgiram no movimento pentecostal. Aliás, todos os pregadores mirins apareceram nos cultos pentecostais. Mas, pode Deus usar uma criança? Criança tem estrutura para ser um pregador(a) do evangelho? Afinal, o que a bíblia fala sobre o assunto? Neste texto falaremos sobre isto.

Bom, primeiramente a bíblia não fala nada sobre o assunto de forma direta. Mas, a bíblia conta a história de homens que foram chamados desde o ventre materno, mas somente na fase adulta iniciaram seus ministérios. Samuel é um exemplo clássico. Após ser entregue pela sua mãe, Ana, aos cuidados do sacerdote Eli, o menino cresceu servindo na Casa de Deus (1Sm 1.24-28; 2.11,18,26). Contudo, só assumiu o trabalho de Deus, e foi confirmado como profeta quando cresceu (1Sm 3.19-21). Jeremias foi chamado desde o período gestacional. Se sentiu inseguro por ter pouca idade para uma grande  responsabilidade. No entanto, não era uma criança quando iniciou o seu ministério profético (Jr 1.5-7). Jesus é um grande exemplo. Aos doze anos estava no templo na companhia de mestres, ouvindo os ensinos e fazendo perguntas. Todos que ali estavam ficaram maravilhados com as suas conclusões sobre os assuntos (Lc 2.42,46,47). Mas, somente dezoito anos depois iniciou seu ministério (Lc 3.23). Isso mostra que há um tempo para todas as coisas (Ec 3.1).

O termo infans, vem do latim; é a origem etimológica da palavra infância, e demonstra que a fala da criança é insuficiente, incompleta e não merece confiança. Nas sociedades antigas, as crianças não tinham evidência. Vemos isso quando os discípulos criaram resistência para que as crianças não se aproximassem de Jesus (Mt 19.13-15). Jesus dignifica as crianças. A fala de uma criança merece confiança, porém, ela pode não ter maturidade naquilo que fala, pela ausência de experiência. Cabe aos adultos analisar o que ela fala. Muitos casos de violência infantil poderiam ser evitados se as crianças fossem ouvidas.

Enquanto os adultos precisam se submeter a um processo longo de formação teológica em sua carreira, e serem vocacionados por Deus, para poderem chegar a ser um pastor, as crianças prodígios queimam todas as etapas ao serem consagradas ao pastorado, em uma fase da vida que mal sabem ler e escrever. Apesar de no púlpito essas crianças apresentarem uma vasta linguagem e técnicas corporais, tudo pode não passar de uma apresentação ensaiada. Em uma entrevista ao site Notícias Gospel Mais, o pastor e mestre em Ciências da Religião Ed René Kivitz, líder da Igreja Batista da Água Branca (IBAB) em São Paulo, diz que as crianças não possuem estrutura intelectual e maturidade suficiente para serem pregadoras. Pois, não conseguem compreender os sentidos reais dos textos bíblicos: “Ela pode, no máximo, decorar discurso e mimetizar o comportamento adulto”. O psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934), em suas pesquisas, constatou que no cotidiano das crianças, elas observam o que ou outros dizem, internalizando tudo o que é observado e se apropriando do que viu e ouviu. Recriam e conservam o que se passa ao seu redor. É exatamente o que acontece com essas crianças, elas reproduzem o que ouvem e veem nos pregadores adultos.

Infelizmente essas crianças viraram um produto lucrativo do mercantilismo gospel. A Folha de São Paulo, em junho de 2021, publicou uma matéria sobre três irmãos pregadores; João Vitor Ota, 12, Esther Ota, 6, e Davi Ota, 15. Somados, os irmãos têm 780 mil seguidores no Instagram. O empresário deles, Silas Bitencourt, diz que João fatura R$ 1.500 para participar de cultos em São Paulo e R$ 2.500 em outros estados. A remuneração para seus irmãos costuma variar entre R$ 500 e R$ 1.000. Bitencourt também é o empresário dos pais destas crianças, que também são pregadores. O pastor Silas Malafaia, líder da Assembléia de Deus Vitória em Cristo, em uma declaração ao site Notícias Gospel Mais, disse o seguinte: “Isso não é comum. Está fora da estrutura psicológica e emocional da criança. É uma exploração por parte dos pais”. Nesta situação não podemos isentar os pastores, que são tão responsáveis quanto os pais. Afinal, a oportunidade que eles precisam para aparecer vem da liderança.

As pessoas ficam maravilhadas com os pregadores mirins. Essas crianças conseguem lotar os templos, e o culto vira um espetáculo. Pregam como gente grande. Gritam, correm de um lado para o outro, pulam, dão golpes no ar, citam bordões, incentivam o povo a dar glória, rodam no mistério, falam em línguas e  profetizam. Se limitam a pregar somente sobre bençãos, vez ou outra, dão uma garfada em situações de pecado. As irmãs, mais sensíveis, acham tudo isso muito “fofo”. Para as famílias é motivo de orgulho. Para o pastor que convidou, foi um bom negócio.

Esta adultização precoce é um perigo. Deus estabeleceu todas as fases da vida, para que elas sejam vividas. Queimar etapas sempre vai trazer danos. Paulo afirmou: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino…” (1 Co 13.11). A chamada para ser pregador é um ato soberano de Deus (1 Tm 2.7; Mc 3.13). Se Ele quiser fazer, desses pequeninos, pregadores do evangelho, o fará, mas no tempo certo. Lembram do profeta Samuel? Porém, o que temos visto é a fabricação de pregadores. Que grande peso estão colocando os pais, e os pastores, sobre os ombros destas crianças. Elas, desconhecem a dimensão da responsabilidade que é pastorear um rebanho comprado pelo sangue de Jesus, e o peso da cobrança de Deus sobre os que exercem esse ministério e para os “outros” que assim se intitulam ou fazem uso para si próprios do ministério pastoral. Parece que tudo é uma brincadeira de criança.

Outro perigo que ronda essas crianças é a soberba. A maioria delas já apresentam um comportamento arrogante enquanto ministram suas mensagens. Não é exagero dizer que o espírito altivo já tomou conta de muitos pregadores mirins. Por duas vezes Salomão escreve no livro dos Provérbios que a soberba precede a queda (Pv 16.18; 18.12) . Receber elogios é muito bom, porém, isso pode arruinar o ministério de um pregador. O elogio pode ser um combustível para soberba; “O crisol é para a prata e o forno é para o ouro, mas o que prova o ser humano são os elogios que recebe.” (Pv 27.21). Muitos pregadores, adultos, começaram a se sentir superior aos outros pelo excesso de elogios. Se sentem inerrantes, infalíveis, e detentores de ideias absolutas. Quem elogia, não faz por mal. Mas, eu percebi que existe elogios que vem diretamente da boca do Diabo. Ele sabe que inflando o ego da pessoa, ela fica suscetível a queda. Esses mirins vivem uma vida de pop-star, e isto acaba causando um deslumbre. Paulo diz que o obreiro não pode ser novo na fé, para que não se ensoberbeça e caia na mesma condenação em que caiu o Diabo (1Tm 3.6). Se não é recomendado que um adulto, novo convertido, exerça funções no santo ministério, quanto mais uma criança.

Criança precisa ser criança. Precisa brincar, estudar, aproveitar bem a sua infância, em vez de ser submetida a uma agressiva adultização. A longo prazo isto pode gerar sérios transtornos emocionais, pois a carga é muito grande para um ser em desenvolvimento. No mundo secular há vários exemplos de crianças que surgiram como grandes astros, e no decorrer da vida desenvolveram transtornos. Michael Jackson é um grande exemplo. Mas, talvez você pense que o cantor norte-americano só obteve esses problemas porquê não tinha Deus. Você pode ter razão. Mas, o mesmo acontece com pastores que possuem longos anos de estrada. Biblicamente, temos o caso de Elias, que após ter uma experiência incrível com Deus, caiu em uma profunda depressão (1Rs 19.1-7). Jeremias começou a profetizar muito jovem, no entanto, apresentou um quadro depressivo no decorrer do seu ministério (Jr 20.7-18). Se não houver todo um cuidado especial com essas crianças, elas podem desenvolver um burnout no futuro, comprometendo a saúde emocional.

Pastora há cinco anos de uma das igrejas da Assembleia de Deus, a teóloga Maria Vita Umbelino diz ver “quase diariamente” crianças sendo levadas pelos pais até a igreja para se transformarem em pequenos pastores. “No meu Ministério eu não tenho criança pregando, sou contra”, diz ela. “Esse período é de aproveitar as brincadeiras típicas da idade e esperar pelo amadurecimento”. Segundo Maria Vita, em declaração ao site Guia me, a escola bíblica oferecida pela igreja já é “mais do que suficiente para o primeiro contato dos jovens”.

Eu creio que Deus usa quem ele quer, inclusive as crianças. Naamã foi curado por ouvir de uma menina que havia um profeta em Israel que podia lhe ajudar (2Rs 5.1-3). Eu conheço casos em que primeiro a criança entrou para igreja, e em seguida os pais lhe acompanharam. Certa vez, a minha mãe foi dirigente do departamento de crianças, e houve um dia em que ela pediu para uma criança orar; ao iniciar a oração, o menino, que deveria ter entre seis e oito anos de idade, foi batizado com Espírito Santo. O poder de Deus não esta restrito somente aos adultos, como muitos pensam.

Não sou contra uma criança ter uma oportunidade no culto para ler um texto bíblico ou cantar um louvor. Muitos cantores e cantoras começaram na infância. Como a Bruna Karla, Cassiane, Lauriete, entre outras, que até hoje permanecessem servindo ao Senhor. Pastor Silas Malafaia já contou diversas vezes que começou a pregar aos 13 anos. Acho louvável quando a igreja reconhece a chamada de um pequenino, e vai inserindo ele aos poucos na liturgia do culto. Na igreja que congrego, tem um menino de 10 anos que sempre pede oportunidade para citar um texto bíblico; como é prazeroso em ver o amor dele pelas coisas de Deus. Porém, tudo tem que ser com muita responsabilidade, e jamais pode se tratar uma criança como um adulto. Colocar uma responsabilidade ministerial em uma criança, como se coloca em um adulto, é um absurdo. A criança pode ser estimulada a pregar o evangelho para seus amiguinhos da escola ou do bairro onde mora, e até mesmo para sua família, não vejo problema nisso. O problema está quando castram a infância para que ela se dedique somente a obra de Deus; quando colocam um fardo maior do que a sua estrutura psicológica; quando usam seu talento para fins lucrativos; quando ordenam elas a um cargo de adulto.

Não há como aceitar uma criança de quatro anos sendo consagrada a pastor. Que capacidade cognitiva uma criança de 5 anos tem para interpretar um texto bíblico? Justificar isso pelo espiritual, é abrir caminho para construção de heresias. Que maturidade uma criança tem para aconselhar um casal em crise? Que experiência uma criança tem para falar sobre a guerra diária contra o pecado? Visto que muitos dos desejos pecaminosos, nesta idade, ainda não estão aflorados. Elas simplesmente repetem o que ouvem, sem a exata compreensão do que estão falando.

Que possamos cultivar o amor a obra de Deus em nossas crianças. Mas, com responsabilidade, respeitando o tempo, e a maturidade. Pois, no tempo certo, Deus manifestará o chamado na vida delas.

 

 

 

 

 

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